terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Olhos de raposa

Vicente cola seus olhos nos meus. Como uma luneta.
O nariz frio é a ponta de seu dedo me reconhecendo.
Com os rostos próximos, diz que tenho olhos de raposa. Enxerga uma raposa correndo de noite.
- Já viu antes uma raposa?
- Não, não preciso ver para saber como ela é.
O amor é mesmo uma cegueira, desde que não se perca os ouvidos e a boca.
Eu já sinto saudade dele mesmo quando estamos juntos. É uma falta antecipada.
Ele não me entende. Busco explicar saudade para suas pupilas paradas de caçador.

Saudade é não rasgar os selos das cartas na hora de abrir. Umedecê-los com o vapor da chaleira.
Saudade, meu filho, é dormir com dois travesseiros para o corpo não doer pelo excesso da cama.
Saudade é arrumar a mesa quando não jantaremos em casa.
Saudade é esperar a ligação do avô que já morreu.
Saudade é não jogar fora as meias que se desencontraram do seu par.
Saudade é não organizar a bolsa ainda que não se encontre mais nada nela.
Saudade é um poço artesiano coberto por uma tábua.
Saudade é uma parede que descascou tangerinas.
Saudade é errar o caminho quando se vai ao trabalho.
Saudade é quando a gente esconde uma lembrança dentro de uma música. E a música dentro de uma lembrança.
Saudade é adivinhar o tamanho do pátio pelo varal.
Saudade é desamassar as roupas com as unhas.
Saudade é tomar banho no escuro.
Saudade é uma residência de verão com lareira.
Saudade é abrir seu diário antigo e pedir ajuda para entender a letra.
Saudade é um avental com as iniciais bordadas.
Saudade é uma boina com cheiro de funcho.
Saudade é pisar descalço na memória com medo de roseta.
Saudade é lembrar do que que poderia ter acontecido antes de acontecer.
Saudade é imitar o assobio de uma porta.
Saudade é fechar o livro para que ele se abrace.
Saudade é procurar o que não foi extraviado.
Saudade é esquecer o que se falou com Deus.
Saudade é saber a importância do que nunca se teve.
Saudade é reconhecer um amigo da infância no filho.
Saudade é sentar na escadaria de uma igreja só para suspirar os degraus que faltam.
Saudade é parar diante de um mendigo com as mãos vazias.
Saudade é lavar os cabelos do violão.
Saudade é usar o cadarço para costurar duas ruas.
Saudade é escrever o que se precisa ler.

Ao entrar em seu quarto no dia seguinte, escuto sua conversa com a irmã Mariana. Ela o incomodava com tapinhas nos ombros e o enervava com apelidos.
- Quando está longe, só penso coisas boas de você, Mariana. Não estraga a minha saudade.


(Fabrício Carpinejar)
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